quinta-feira, 6 de maio de 2010

Diálogo ou Pouca poeira é bobagem

A: O amor dá a beleza de um mundo inteiro. Dá amor, dá a mão, dá o que eu preciso.
(...)
B: Eu aviso. Avisei, cansei, loucura. Digo que é loucura e ela, a vida vai batendo à porta, diria. E ela está lá. Aviso, cansei de avisar. A loucura está lá, batendo à porta. Bate, a loucura penetra as frestas azuis, amareladas, as frestas frescas, tinta fresca.
(...)
A: Tinta fresca. Disse para usar tinta. Azul? Dá o que eu preciso?
(...)
B: A luz penetra nas frestas, olhares nas frestas, a tinta fresca, as frestas gastas. A mão empurra, tantas frestas gastas, olha, olha, as frestas já gastas. As frestas novas, veja, olha as frestas estão frescas, é tinta nova. É outra cor, outra tinta, outro tom. Ver as frestas frescas, tinta nova, diverte as mãos que tentam empurrá-la. Tampe as frestas, diria, você diria. Mas as frestas estão abertas e crescem. A luz pelas frestas de tinta fresca transpassa e ilumina, e entra, e cai sobre o chão. O chão, sim, gasto pelo tempo, o chão com frestas, frestas de madeira, mas maciço. A chão gasto pelo tempo, deita, o chão gasto, deita, ele é duro e terno. O chão gasto pelo tempo transpassa a luz e desprende lembranças, lembranças e passos gastos. Passos e sapatos que penetraram nas frestas. As frestas na madeira gasta pelo tempo.
(...)
A: Deito, deito aqui. Dá a mão?
(...)
B: Subitamente a luz aumentou, ela penetra e cresce, entra e ilumina o chão, as frestas, as lembranças e corpo, seu corpo. As frestas, a luz, o chão de madeira, o corpo que sabe sentir frieza e ternura. Caminho pelo chão, procuro as frestas abertas, penetro a pele e caio num canto. A luz penetra a sala e aquece as lembranças, cozinha o que restou. E é nas frestas, nas frestas da porta, nas frestas do chão de madeira, nas frestas das lembranças de saltos e sapatos que me encontro. Encontro.
(...)
A: Conheço o caminho.
(...)
B: Na luz, as frestas parecem maiores. Na luz, o que entrou pode sair. Ainda que sobre o chão frio, o chão de madeira gasta. Aumento as frestas de pé descalço. Caminho e alimento as frestas e as lembranças de pé descalço. Frestas estão em toda parte. De sala em sala. Caminhos levam poucos passos às portas certas. Eu, eu fabrico minhas frestas. Farpas e sangue. Tinta fresca. E, de repente, é isso. Afinal, não há portas, chãos de madeira e frestas dando sopa por aí.
(...)
A: Sopa? É. Frestas. Não há. Estou com fome.

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