A escolha de Clara

A vida em mim é tão insistente que se me partirem,
como a uma lagartixa,
os pedaços continuarão estremecendo
e se mexendo.
(C.L.)








1

Clara sentiu uma vontade louca de dançar. O vermelho do vestido marcava cada curva, cada lombada de um corpo usado. Entre tantos pensamentos, usado era o único adjetivo que ela encontrava. Usado por homens, mulheres, pelas horas que passava embaixo d’água para esquecer outro dia que separava seu ideal do que ela era forçada: mergulhar seus pés, joelhos e coxas em uma realidade que insistia em acontecer. Os dias insistiam em nascer, o sol insistia em parar, o dito cujo lá em cima, esquentar: - Não, eu não quero que o dia nasça amanhã – Clara repetia. Repetia 3, 4 vezes só para ter certeza.
E aquela existência irritante continuava existindo. O sol continuava, desafiante, seu curso. As pessoas continuavam acordando e os telefones, todos os telefones do mundo, continuavam soando os ridículos toques. E as pessoas, que continuavam acordando, continuavam programando seus ridículos toques para revelar a quem estava a sua volta sua predileção musical. – Tolos, um bando de tolos.
Clara achava sua mente enegrecida demais para o seu nome. Tentou mudar uma vez, implementar apelidos, mas só os populares (ou os perdedores) que são dignos de apelidos. E ela não era nada. Ela não era nada mais do que um outro alguém.
A vontade de dançar era real e, por mais que o gesto fosse inchar a sensação de abandono de alma, ela se resolveu com uma solução. Um jazz maltrapilho era perfeito.
Uma abajur pequeno iluminava a sala do apartamento. Décimo sétimo andar. Clara gostava do frio no estômago de se ver pendurada com nada além de um vazio sob seus olhos. Algo como voar, mas sem asas, paraquedas. Clara costumava dizer que a altura não a assustava. Não. A altura era o prenúncio da queda.
A altura era o prenúncio da morte e ela gostava de conviver com a morte, lado a lado. Uma parede de concreto (uns 50 centímetros?) separava a vida da não-existência. Ela costumava afogar o superego quando estava sozinha e brindava à morte iminente. Mas a morte nunca chegou. Clara era covarde demais. Assim como eu.


2

Chupei meu dedo menor com toda força que encontrei. A carne ardia, mas o gosto do próprio sangue era bom. A gota de sangue vermelho vivo brotou mais uma vez do canto do dedo menor e chupei mais uma vez. Acompanhada da gota de sangue e do dedo menor estava uma mão magra, lisa com dedos compridos e tortos. Duas verrugas em lugares diferentes e algumas pintas. As unhas fracas e roídas. Mão de pianista. De macho. De lésbica. Mão de Clara.
O sangue forçou os dentes a uma faxina nas unhas. Deixei a arcada no serviço higiênico enquanto fazia as contas do pouco sexo em que minha vida estava inserida.
Há anos, me prometi uma vida ativa, uma vida de mulher. Camas, homens, calcinhas pelo chão em um sem número de histórias. E, como uma cabeça masculina, o negócio era quantidade. Três dezenas de parceiros mais tarde, Clara esqueceu.
E chorou. De repente, quando eu menos esperava, a menina enterrada lá na adolescência ressurgiu. Clara comparava a menina aos zumbis dos thrillers mal feitos. A menina, agora, só queria saber de devorar pedaços da razão que ela construíra à base de nãos e trepadas pela metade. Um trabalho pra conseguir isso!
A menina era um câncer no peito e nos olhos. A tal menina plantava choros sem sentido em cada casamento, nascimento, em cada comédia romântica, em cada comercial sentimentalóide.
É uma constatação triste, mas mulheres nascem com esse câncer. Um câncer que, mais cedo ou mais tarde, talvez cedo demais, aperta o peito e os olhos. É um câncer de não mata em um mês, em um ano, mas mata de pouco em pouco em pouco em pouco. É um câncer que, vez ou outra, embaça os olhos em busca de cenas românticas. Um câncer de muda sonhos. É um câncer que engana.
Teresa bateu no meu ombro na universidade... e daí surge uma triste história de sonhos brancos, prazer não velado, filhos não queridos e uma temporada na casa de loucos. Uma entre tantas. Se não terminam na casa de loucos, terminam aceitando a parte que lhes cabem em um latifúndio esgotado já.
Câncer de nascer mulher. De ser criada embaixo de valores velhos, contorcidos, mas embrulhados em um papel de presente com laço horroroso em cima. Aqueles de vó. Em um papel de contemporaneidade, uma voz um pouco falsa que teima em dizer sobre liberdade. Que não há mais correias e rende-se à maioria burra quem de fato o é. A psicologia acabou sendo mais eficiente do que eles jamais imaginaram. Aceito de bom grado o pacote de valores enfeitado e visto-me de um orgulho besta. Afinal, eu sou livre e me igualo a você.
Esqueceram de contar das consequências. E eu, tão burra como as outras, deixei os questionamentos para mais tarde.
A consequência é uma dor que corta por dentro: o estar só. Assim como zumbis, os outros me cercam constantemente: bares, metrôs, bancos, de take em take,
Eles estão sempre ali. As mãos, os beijos estalados constantes que deveriam provar algo (ainda não sei bem o quê). Elogios e o desejo perceptível de mostrar um poder que não pode ser conquistado. E, por isso mesmo, os dois lançam olhares de vitória. A crista levantada e a certeza de estar diante de alguém que fracassou. Tudo se trata de poder.


3

Clara acha que colocar os olhos na janela e contar luz por luz, um mar de luz, rios desconexos de luzes sempre é como um imã. Coloco os olhos nas luzes, no vazio e prevejo a queda. Ainda que ela nunca aconteça. A sensação de morte imediata nasceu com a minha espera. Sou mais um bobo sentado na cadeira da espera pelo que tenho saudade de jamais ter tocado. Sou mais uma espera.
Paro na fila antes de pegar o transporte coletivo e sou cercada de rostos que encontraram. Eles gritam com os olhos, com as mãos: “Que você continue na espera”.
Eu sempre pedi sonhos em segredo porque eu sabia que a realidade entendia palavras ditas baixinhas. De uma sala a outra, eu fui transferida, sempre na promessa cega de que sonhos em segredo era exatamente a linguagem de deus.
Deus ouviu calado. Mas os homens não entendem a linguagem de deus e julgaram que eu não tinha sonhos.
Vesti-me com as roupas da luta e empunhei a arma que me coube. Fiz questão de dizer aos mundos que era serva da realidade, que de sonho eu era imune, graças a deus.
E vivi os dias assim: empunhei armas de todos os tamanhos e cores, fiz questão de percorrer meus iguais, meus tetos convencendo-os de que eu era imune. E quem viesse comigo, viveria uma existência imune. E sou uma fraude. Sempre fui uma fraude mal feita, pele e roupas e sonhos em segredo.
Clarice contou pra mim quando passei semanas G.H. e sua paixão: “Toda a minha luta fraudulenta vinha de eu não querer assumir a promessa que se cumpre: eu não queria a realidade”. E assim eu me assumo.
De tanto treinar, os sonhos secretos surgem sozinhos. Engasgo com alguns deles. Já pensei que morreria afogada de (em) segredos.
A antídoto está na realização do sonho, mas meu palpite é que deus faz gente para ocupar cadeiras. E não me julgue pela conformidade. A desistência pode ser um prêmio.


4

Do dia sem sono, da madrugada:
Não me julgue, mas hoje vou gritar a má sorte. Gente que não encontra o seu lugar é bem assim: entre toda piada do mundo e um mar de angústia em que sorrisos nem podem virar pó, porque nem podem existir.
Eu cansei de rever dias, os fatos, os beijos, a falta, o término. Cansei de encontrar padrões. Porque para estar tudo como está, só pode existir um maldito padrão que come minha raiz enquanto me dá vitaminas.
Um planta doente. Se a raiz é podre, não existe um santo que se enterre nela. Não tem o que tirar e água não basta. Não tem um santo que, se soubesse de como a raiz está podre, correria pra outro vaso, outro corpo, outro mundo.
Eu não sei amar. E não tem um maldito dia que eu não revire os fatos, os beijos, a falta, o término em busca de uma maldita resposta. Eu não sei amar e, como coração pensante, quero saber o porquê.
Estou assustada com a ideia simples, com a ideia totalmente palpável de que as coisas são como são. Aquela sua boca enorme repetiu isso pra mim uma tarde em que deitávamos no chão, quietos, porque não tínhamos mais o que dizer.
Tenho uma maldita mania de tentar encontrar padrões. Porque se existirem padrões eu posso me convencer de que a culpa é minha, culpa de sentimentos defeituosos.
O dia em que eu parar de tentar encontrar meu padrão, tenha certeza que eu finalmente entendi que as coisas são como são. E então eu não vou mais existir.
Com amor,
Clara


5

Amar é ser a pessoa preferida de alguém? Clara?

Eu nunca fui boa com abandonos. Fim de livro, de série de TV, de ano, fim de vida, fim de abraço. Eles costumavam me fazer ver as coisas muito melhores do que elas realmente eram, do que elas foram. Era uma saudade-espuma. Deixava grande, inchava, deixava bonito.
Hoje, eu não sinto nada disso. Cresci. Hoje, qualquer abandono dói. É angustiante, como se uma mão entrasse pelo peito e apertasse bem forte, esmagando algum tipo de coisa gosmenta. É como se eu visse meu coração escorrendo por entre os dedos. E eu só consigo parar e olhar. Eu não tiro o olho de coisas sem o menor sentido, não me movo.
Ver meu coração diminuindo é uma tristeza que eu aprendi.


6

Do fundo do frio do estômago, quase madrugada:
Se tudo se trata de poder, porque eu me sinto assim? Um buraco maior do que eu mesma aguentaria, um sem-nada pronto para terminar um não-sei-o-quê.
Aí eu me perco de seriado em seriado. É, seriados de novo. Porque a vida é assim: pequenos capítulos de coisas intensas que começam e terminam em 20 minutos. E aqueles 20 minutos em uma bacia de horas, apagam um pouco o escuro de perceber-se no buraco.
Eu troco de seriados como troco de sentimentos. Paro, bebo um gole de água, caminho pelo apartamento (só pra constatar que a bacia de horas continua lá, intacta) e volto para apagar meu escuro por outros 20 minutos.
Acho que preferir seriados a filmes pode explicar minha resistência a entender o fim. Tecnicamente, um seriado não tem fim. Os 20 minutos acabam, o óbvio não interessa, e lá estão outros 20 minutos. Pra mim, naqueles minutos, eles são meus. Aquela vida é minha. E eu sou deus.
Mas se tudo se trata de poder, é melhor pensar que eles são feitos exatamente com essa finalidade: criar pequenos deuses. Deuses controladores por 20 minutos e mortais que arrastam em uma bacia de horas entre um episódio e o próximo.
Algumas vezes eu preciso bater a cabeça em um granito frio para perceber que estou viva, mas acho que isso não é grande coisa. É tudo parte de uma piada mesmo.
Sem muito o que dizer,
Clara


7

Hoje Clara resolveu não acreditar em destino. Conheço um sem-número de gente que costuma não acreditar em mãe, nem em filho, espírito santo então... Só não crêem. Eu não acredito em gente que não gosta de chocolate. Você tem todo direito de não acreditar em mim.
Hoje Clara resolveu passar o dia e não pensar uma só vez em destino. Aí tinha uma criança na rua, guardando carros. – As coisas são porque são. Não há uma explicação. Ela nasceu assim, em uma casa aleatória e precisa guardar carros aos 7.
Não, não, destino, não.
Vi uns oito casais no caminho de casa até o bar. Chegando lá, na roda dos amigos, vi mais... todos. Todos casais do mundo. – As coisas são porque são. Não há uma explicação. Eu nasci assim, as pessoas simplesmente não formam casais comigo. Desde de sempre. Devo ter esperança?
Não. Destino não existe, então vou ter esperança em quê? Sorte. Sorte não é destino? Constatar e discutir a incapacidade de fazer parte do que foi programado para me fazer feliz não é ter algum tipo de esperança e, assim, discutir destino?
Quais as chances de Clara realmente conseguir passar um dia sem acreditar em destino quando gastam-se anos para criar terminações nervosas associadas a sensações reais que não satisfeitas fazem o ato de acordar de manhã (escovar os dentes, se alimentar, se proteger do frio ou do calor, comprar um celular ou pular de paraquedas) totalmente sem sentido?
Acreditar em destino é iminente, meu caro. É porque é e não se pode fugir. Por isso prefiro não acreditar em gente que não gosta de chocolate.





this is not a pipe. e nem um fim.

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